- Tu és louco e as tuas loucuras deliciam-me os dias. - disse Sílvia Portijo depois de trincar metade de uma bolacha que estava em cima da mesa de madeira, esquecida desde o pequeno-almoço. Rapidamente se arrependeu de tal gesto, que a bolacha esfarelou-se sujando o seu colo com migalhas de chocolate.
Ele olhou demoradamente para aquela mulher com corpo de menina. Magra demais, talvez; com traços finos, toda ela dessa natureza: ancas finas, ombros frágeis e feições que lhe faziam sobressair o sorriso. Não o fazia muitas vezes, mas fazia-o demasiadamente bem para ser apenas mais uma rapariga. As migalhas de chocolate tinham sujado o seu vestido de flores, antigo, com flores coloridas que contrastavam com a sua pele pálida. Um vestido que lhe fazia sobressair a cintura com uma fita de seda amarela. Apesar do seu tom pálido a sua saúde transparecia em todo os seus gestos: a sua cara rosada, os seus olhos verdes muito vivos, o seu cabelo negro brilhante que geralmente vinha solto e um pouco despenteado dando-lhe um ar de menina traquina, e que hoje vinha atado de lado com uma flor a rematar o pormenor.
- Deixa-me ajudar-te com isso Sílvia. Eu limpo o chão! Vai lá tratar do teu vestido...
Ela levantou-se lentamente, com cara pensativa, um sorriso enigmático que o fez estremecer. Correu para o rádio da sala, fez o ritual de tocar em trinta botões e ligou a máquina. "Salif Keita"
e as suas mãos no ar, balançava o corpo por aquela sala comprida ao som daquela música. Já tinha espalhado todo o seu perfume por ali, de olhos fechados seguia dando voltas a mesa e às poltronas de tecido sem tropeçar no candeeiro de pé alto. Já sabia aquela sala de cor que desde pequena, e Ricardo Nunes era testemunha disso, dançava por ali de olhos fechados e rodopiava como se entrasse num exorcismo de felicidade.
- Ricardo! Junta-te a mim! Vamos dançar!
- Mas não vais lavar o teu vestido?
Na realidade as migalhas já tinham sido espalhadas pelo chão e já não existiam mais aos olhos de ninguém.
- Não sei dançar... - respondeu Ricardo, tentando esconder a timidez detrás da vassoura que tinha pegado a pressa assim que ouviu o pedido. Já tinha sido alcançado por Sílvia que lhe pegou na mão e, praticamente, lhe arrancou a vassoura laranja. Puxou-o para o meio da sala como fazia quando eram pequenos, e ele lá se deixava ir... Meio contra vontade, meio por satisfeito de ver aquela rapariga bailar tão feliz. Ele lá ía por arrasto.
-Não sei dançar! - Tentou chamar a atenção do quanto incomodado estava de ser arrastado pelo salão de festas, tropeçando em mesas e cadeiras, no tapete...
- Não fales! Sente a música...
Aproximou-se dele e sentiu-lhe o corpo tenso, sem vontade. Olhou-o nos olhos e deu aquele sorriso brutalmente devastador de más disposições. Parou no meio da carpete ao lado da lareira que nesse dia fumegava lentamente. A madeira do soalho tinha então parado de ranger e começava a estalar e a voltar à sua posição natural.
A música agora era outra,
o som mudava de alma, e a alma precisa de tempo para ser vontade.
Ele era um louco, era belo e ela adorava o seu ar despreocupado, a sua maneira de por a boca quando pensava concentrado em algo, adorava o seu olhar perdido no espaço quando pensava...
- Vamos... - foi interrompida pelo gesto de silêncio delicado de Ricardo.
- Vamos ficar em silêncio, ouvimos a música, rimos, vamos até a varanda fumar um cigarro, conversamos lentamente, para que não se perca nenhum momento da tua voz, e nenhum momento da minha capacidade de te escutar, danças para mim se quiseres, mas eu gosto só de olhar-te.
- Era o que eu ia dizer... sabias que me adivinhas os pensamentos?
Levantou-se para sacudir as migalhas, e correu para o seu quarto para trocar de vestido enquanto gritava "Obrigada Ricardo! Limpa lá o chão num instante que eu já estou atrasada..."
1 comentário:
curti imenso do instrumental da 1ª musica...
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